Só em 2021, morte de jovens por Covid equivale a 13 boates Kiss |
Só em 2021, as mortes por
Covid-19 de quem tinha entre 20 e 39 anos equivaleram a 13 incêndios na boate
Kiss, a tragédia gaúcha que matou 242 pessoas em 2013.
Nada que desestimule jovens a
agirem como Sarah Andrade, 29, agiu antes de voluntariamente ir para um
confinamento.
A consultora de marketing correu
para o banheiro e se agachou para atender o celular. Estava numa festa na
alagoana Barra de São Miguel quando alguém da equipe do Big Brother Brasil
ligou para avisar que ela teria de fazer um exame de Covid antes de entrar no
reality show.
"Eu disse: 'Claro, com
certeza'. Mas tava bêbada!", Sarah contou na semana passada, já na
quarentena televisionada, disposta a entreter os colegas. As redes sociais
viram pouca graça no descaso com o protocolo sanitário que tenta conter uma
pandemia que já matou mais de 300 mil pessoas no Brasil.
Seu comportamento, contudo, não
destoa do de tantos que aglomeram em eventos como se UTIs lotadas fossem uma
ficção da TV. Que não se enganem: pessoas mais jovens estão adoecendo mais, e
morrendo mais também.
Peguemos a faixa etária de 20 a
39 anos. Eis os dados que o Ministério da Saúde disponibilizou para as dez
primeiras semanas do ano.
Até 20 de março, 27.265 desses
brasileiros foram hospitalizados com Covid (12,5% do total de casos) e 3.166
morreram (5%). Uma média de 40 vítimas por dia.
Pesquisador em saúde pública da
Fiocruz, Raphael Guimarães diz que ainda não há evidências de que os quadros
mais severos entre os mais novos tenham relação com uma variante mais agressiva
do vírus. Há estudos em curso para verificar essa hipótese, mas uma coisa lhe
parece certa.
Eu apostaria que um número maior
de jovens, independentemente da gravidade, se dá pela baixa adesão ao
distanciamento
"Eu apostaria que um número
maior de jovens, independentemente da gravidade, se dá pela baixa adesão ao
distanciamento. A verdade é que as pessoas querem acreditar no vírus, e não no
mau comportamento dos grupos."
A postura aparentemente kamikaze
não surpreende Christian Dunker, psicanalista e professor do Instituto de
Psicologia da USP. São "jovens cumprindo seu destino de serem
jovens".
Dunker prefere não falar em falta
de noção e empatia de uma juventude transviada. "O que ela tem é a
fantasia de ser especial. Talvez acalentada pelo bolsonarismo, pela ideia de
'comigo não acontece'", diz. "Como a gravidez adolescente. 'Ah, sabia
que não podia não usar camisinha, mas tinha o o sentimento de que comigo não ia
acontecer'."
E há o autoengano. A gerente de
TI Ana Souza, 36, diz que tomava todos os cuidados mas, "depois de um
projeto no trabalho muito estressante", achou que merecia viajar. Chamou
duas colegas, "viagem de menina mesmo".
Uma delas, contudo, estava
infectada e não sabia. Ana começou a ter os sintomas clássicos, da perda de
olfato e paladar à febre inclemente. Voltou para São Paulo, foi internada. Logo
ela, que faz cross training e se alimenta "superbem", chegou a ter
90% do pulmão comprometido.
Era de madrugada quando a
avisaram que seria intubada. "'Vou morrer, não quero morrer', eu só
repetia isso." Os irmãos a convenceram numa chamada de vídeo.
No terceiro dia, a equipe médica
ligou para a família dizendo que fez tudo o que podia. Ela acordou quatro dias
depois e ganhou o apelido de Ana Fênix.
A professora de ioga Patricia
Orlando, 26, não chegou a ser intubada, mas também passou por maus bocados.
Acordou com dor de garganta e, no meio do dia, sentiu um cansaço como nunca
antes. À noite, o quadro piorou. "Não tive falta de ar, tive dor no peito.
Limpava o nariz e saía sangue na secreção."
Só no décimo dia deu sinais de
melhora. Até hoje, indaga-se sobre onde contraiu o vírus. "Não saía muito
de casa, só estava vendo meus pais. Sábado teve churrasco de família que tinha
seis pessoas e uma criança. Ela estava meio resfriadinha, mas não era Covid."
Patricia conta que foi também a
um terreiro de umbanda –um lugar amplo e aberto, com poucas pessoas e distância
entre todos, segundo ela.
Especial?
O ser humano é o único animal
ciente de que vai morrer um dia, ele e todas as pessoas que ama. É um "ser
que caminha para a morte", como sintetizou o filósofo alemão Martin
Heidegger.
"O que Sigmund Freud
percebeu, no entanto, é que existe uma tendência humana para recalcar essa
consciência da morte", diz a psicanalista Fernanda Hamann.
No caso dos jovens, é mais
radical do que recalcar a finitude. "É uma negação. Estão no auge da sua
potência corporal, muitas vezes têm fantasia de que são onipotentes."
O que Sigmund Freud percebeu, no
entanto, é que existe uma tendência humana para recalcar essa consciência da
morte
Daí ser comum que se coloquem em
situações de risco, como fazer sexo sem proteção, se engajar em esportes
radicais e abusar de álcool e drogas, afirma Hamann, coorganizadora do livro
"Juventude e Saúde Mental: A Especificidade da Clínica com
Adolescentes".
Como Dunker, também Hamann acha
que a oratória negacionista do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é um
elemento nessa equação. "O discurso da autoridade máxima de que não é
necessário temer essa 'gripezinha', ah, 'deixa de mimimi', se casa com a
fantasia de onipotência do jovem. A maioria deduz que não é necessário
temer."
A estudante de contabilidade
Deise Gouveia, 21, é adepta do "caiu, levanta". Em dezembro de 2020,
quando epidemiologistas alertavam sobre o risco das aglomerações de fim de ano,
Deise bebeu muita cerveja numa festa com pagode da banda Di Propósito, no
carioca Complexo do Alemão, onde ela mora.
Voltando bêbada para casa, já de
manhã, tentou se apoiar numa porta, rolou escada abaixo e foi parar na sala de
uma vizinha. Uma amiga gravou o tombo, que viralizou nas redes. Desde então, a
"Deise do Tombo", como ficou conhecida, é influenciadora digital com
quase 600 mil seguidores no Instagram.
As fotos que ela posta mostram
que sua vida social continua tinindo: Deise na piscina, Deise com amigas, Deise
num jipe em Penedo (RJ), quase sempre sem máscara.
Ela conta que sai
"normalmente para compromissos, mas com todos os cuidados possíveis, pois
a Covid ainda está por aí". E que não teria como ser diferente, diz.
"Infelizmente tenho que correr atrás de uma renda para ajudar minha mãe em
casa. Não só eu, bastante gente está nessa."
Para Dunker, é preciso também
considerar o contexto social em que muitos desses jovens vivem. Muitos têm o
que ele define como "vida de sobrevivente". O que são das favelas,
por exemplo, muitas vezes já pegam transporte público lotado para trabalhar.
Fora a violência cotidiana que os envolve.
"Cada vez que você escapa,
confirma a tua armadura de Wolverine." Invencíveis.
ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
DA FOLHAPRESS
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