A sudanesa é mãe de um menino de 2 anos e está grávida de 8 meses.Foto: Whattalking.com |
Meriam Ibrahim,
uma sudanesa de 27 anos, foi condenada à forca por um tribunal de
Cartum. O crime? Adultério e apostasia, ou seja, renúncia à sua fé. Ela é
filha de pai muçulmano e mãe cristã ortodoxa. Quando tinha 5 anos, o
pai sumiu e Meriam foi criada como cristã. Adulta, casou com um cristão -
daí o adultério. Sim, você leu bem.
Mas tem mais.
Como a ré está grávida de oito meses, o juiz bancou o Salomão: Meriam
dará à luz, e depois será executada. Pouco antes da forca, receberá cem
chibatadas.
A sharia, a lei
islamita que rege a jurisprudência nas teocracias maometanas, foi
introduzida no Sudão em 1983. No ano passado, a Anistia Internacional
denunciou que duas sudanesas de 23 anos foram condenadas a morrer
lapidadas por adultério. Independentemente da fé dos cidadãos, os atos
considerados "indecentes" ou "imorais" podem implicar flagelação ou
amputações.
Na semana
passada, enquanto universitários se manifestavam em Cartum contra a
condenação de Meriam, conservadores celebravam a sentença: "Alá é
grande" - e recordavam que a ré foi denunciada pelo próprio irmão. O
advogado de Meriam entrou com recurso, confiando nas discrepâncias entre
a sharia e a Constituição sudanesa.
No Irã, foi uma
página do Facebook que suscitou um piti nos tietes daquilo que alguns
chamam de "islamofascismo". No início do mês, a iraniana Masih Alinejad
postou uma foto dela sorrindo sem o hijab, com a hashtag
#minhafurtivaliberdade. No Irã, uma mulher em público sem o véu
significa cem chibatadas e dois meses de prisão.
Masih não
previu a resposta torrencial que a obrigou a criar, dias depois, uma
página para aquilo que tinha virado um movimento. Dezenas de milhares de
mulheres aderiram - a página atingiu 300 mil integrantes. De Persépolis
a Teerã, iranianas desataram a postar fotos sem o lenço, em locais
ermos como dunas do deserto. Uma tirou o lenço e sacudiu a juba diante
do gabinete do aiatolá Khamenei, o líder espiritual do país.
Jornalista,
Masih foi presa no exercício da profissão, agredida fisicamente e alvo
de campanhas de difamação. Como disse ao Guardian, "não se trata só da
polícia da moralidade. Uma mulher que se rebele mesmo furtivamente se
arrisca a perder o emprego e o apreço de parentes e colegas". Não deu
outra: o pai cortou relações ao saber do Facebook. Masih se exilou em
Londres - será presa se regressar ao Irã.
A represália do
regime pegou pesado. Na semana passada, a página #minhafurtivaliberdade
foi hackeada por esbirros do governo. Um certo Hadi Sharifi, que se
define como "ativista da mídia", deu entrevista à agência Tasnin,
publicada na página. Cuspiu marimbondos: "Masih é agente da CIA e
aquelas que 'curtiram' a iniciativa sofrerão as consequências". E
concluiu: "Os homens iranianos têm o direito de estuprar as mulheres sem
véu, já que elas circulam praticamente nuas".
Masih deu o
troco e inaugurou uma nova página, com a mensagem: "Vocês podem hackear
páginas, mas não nossa liberdade". Só faltou publicar a mais comum
maldição do mundo árabe: "Que as pulgas de mil camelos infestem seus
sovacos!"
A crispação
continua vulcânica. Na terça, quatro jovens sem véu foram presas em
Teerã, por divulgarem um vídeo intitulado Happy. Nele, elas dançam a
canção homônima de Pharrell Wiliams, para celebrar o Dia Internacional
da Felicidade. O vídeo teve 30 mil visualizações. Hossein Sajedinia,
chefe da polícia iraniana, estrilou: "Nossa querida juventude deve
evitar pessoas dessa laia, como atores e cantores." Na quinta, as
detidas foram libertadas - cada uma terá de pagar uma multa equivalente a
R$ 30 mil.
A proibição da
cabeça descoberta das mulheres ecoa tabus não exclusivamente muçulmanos.
Também no Ocidente a cabeleira feminina já simbolizou ambivalências
equívocas. Por exemplo, com Rapunzel, dos irmãos Grimm. Fechada numa
torre para a preservação de sua virgindade, ela dá no pé descendo por
suas próprias tranças.
Outro mito
sugestivo é o da Medusa, beldade cujo cabelo é composto por serpentes, e
que transforma em pedra os homens que a contemplam. Num ensaio póstumo
(Medusenhaupt), Freud rumina que a cabeça da Medusa, com seus cabelos
venenosos, fornece "o símbolo supremo da castração." Não admira que, no
Irã teocrático, o véu corresponda a uma exclusão do cabelo - e seja das
carecas que eles gostem mais.
Como demonstrou
o vídeo Happy, as cabeças descobertas das iranianas configuram uma
espécie de anti-black block. Enquanto estes ocultam o rosto para
promover a depredação, a ira e o anonimato, elas tiram o véu para
reverenciar a identidade, a alegria e a liberdade. E, eventualmente,
invocar Santo Agostinho: "Deus, dai-me a castidade - mas não já".
PAULO NOGUEIRA É JORNALISTA, AUTOR DE , O AMOR É UM LUGAR COMUM (INTERMEIOS)