Márcio Virginio da Silva, de 37
anos, o babalorixá Márcio de Barú, responsável pelo terreiro de candomblé na
Penha, tentou seguir o caminho do diálogo. Nos primeiros ataques, que também
incluíam ovos e legumes podres, acreditou que as agressões logo parariam.
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Os feixes de luz que, durante o
dia, invadem o terreiro Ilê Axé Obá Inã, na Penha, Zona Norte do Rio, não têm
nenhuma motivação decorativa ou espiritual. Os buracos nas telhas de alumínio,
por onde os raios de sol invadem o local de culto, são reflexo do preconceito,
manifestado na forma de pedras portuguesas lançadas recorrentemente sobre o
espaço há pelo menos um ano e meio, perfurando o teto e a dignidade dos
frequentadores — uma perseguição que não cessou nem com as denúncias à polícia.
No terceiro dia da série de reportagens “Um Rio de ódio”, o EXTRA revela a
marca da intolerância religiosa no estado, que em mais de um terço dos
registros de ocorrência do gênero atinge seguidores da umbanda e do candomblé.
Márcio Virginio da Silva, de 37
anos, o babalorixá Márcio de Barú, responsável pelo terreiro de candomblé na
Penha, tentou seguir o caminho do diálogo. Nos primeiros ataques, que também
incluíam ovos e legumes podres, acreditou que as agressões logo parariam.
Depois, procurou a síndica de um prédio que fica ao lado do espaço, de onde
julga estarem sendo lançados os objetos, e até foi bem recebido. Contudo, a
reunião de condomínio convocada para tratar do caso acabou desmarcada. Desde
então, já são dois registros de ocorrência na 22ª DP (Penha), ambas nos
primeiros meses deste ano. Há dez dias, logo após as atividades de uma noite de
segunda-feira, o babalorixá retornou à delegacia, acompanhado de testemunhas,
para relatar mais um episódio de violência.
O babalorixá Márcio de Barú
mostra as pedras que atingiram o terreiro O babalorixá Márcio de Barú mostra as
pedras que atingiram o terreiro Foto: Fábio Guimarães
— Desta vez, a pedra quase
atingiu o rosto de um filho de santo da casa. Passou do lado. O pior de tudo é
que, nesta última ocasião, eu sequer consegui formalizar a denúncia. A pessoa
que estava lá (não sei se era inspetor, agente, delegado) falou que eu
precisaria tirar umas fotos do telhado e das pedras, para ver se aí, quem sabe,
daria para registrar a ocorrência. Estão esperando o quê? Que acerte uma
criança? A gente se sente muito desamparado — desabafa Márcio.
A história do babalorixá não é um
caso isolado. Vizinhos das vítimas são a principal autoria dos crimes de
intolerância religiosa, respondendo por 25% das ocorrências. Do mesmo modo,
entre os locais onde acontecem os ataques, os locais de culto surgem como o
segundo endereço mais frequente da discriminação, perdendo somente para a
residência do agredido.
Em maio deste ano, uma jovem
procurou a Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) para denunciar o
ex-marido, com quem continuava morando devido a dificuldades financeiras. Na
especializada, ela contou que, durante uma discussão na casa em que os dois
dividiam em Padre Miguel, na Zona Oeste , o homem a atacou fisicamente e, como
se não bastasse, fez uma série de ofensas à sua religião: “Puta pobre,
macumbeira, sou preconceituoso mesmo”, disparou o agressor, segundo o registro
de ocorrência.
— A gente já sai com medo de bala
perdida, de assalto, de atropelamento. Aí, acaba agredido ou apedrejado por
conta da nossa fé. É triste, né? — diz o babalorixá Márcio de Barú.
Jorgina e Sandra: a mãe de santo
saiu pela primeira vez vestida com trajes da umbanda Jorgina e Sandra: a mãe de
santo saiu pela primeira vez vestida com trajes da umbanda Foto: Fábio
Guimarães
‘Sua macumba fez ela ficar
doente’
Jorgina de Mendonça, de 61 anos,
teme sair às ruas. Até a hora de comprar pão pela manhã virou um martírio para
a mãe de santo, que trabalha como cuidadora e doméstica na casa da professora
aposentada — e sua filha de santo — Sandra Portugal, de 56. As duas dividem o
sobrado onde Sandra, que tem câncer no abdômen e faz sessões semanais de
quimioterapia, mora há três décadas na Ilha da Conceição, em Niterói.
Uma pedra arremessada da rua, e
que quebrou o vidro de uma das janelas da casa, no início de fevereiro, marcou
o início de uma série de episódios de intolerância na vizinhança. Sandra lembra
com detalhes o que aconteceu na manhã seguinte, quando foi ao ponto de ônibus
para tentar descobrir quem era o autor do ataque, posteriormente registrado na
polícia.
— Um vizinho saiu de casa aos
berros, me chamando de feiticeira, de bruxa. Não fazemos nada errado. As
pessoas têm medo do que não conhecem — conta Sandra.
Sonia Alvim, diretora regional da
Fenacab Sonia Alvim, diretora regional da Fenacab Foto: Fabio Guimarães
Nos dias seguintes, o alvo das
agressões passou a ser Jorgina. Certa vez, enquanto ela acompanhava Sandra,
veio o grito: “Sua macumba fez ela ficar doente”.
— Não aguento mais essa
perseguição — desabafa a cuidadora, que saiu de casa pela primeira vez com os
trajes de mãe de santo para encontrar a equipe do EXTRA.
Quando as ofensas não se dão nas
ruas, a internet vira terreno fértil. Em abril, a Federação Nacional do Culto
Afrobrasileiro (Fenacab) denunciou à polícia ataques sofridos em redes sociais.
As postagens incluíam frases como “o povo do candomblé não vale aquilo que
defeca” e a sugestão da criação de um “grupo de extermínio religioso”.
‘O povo de santo vem sofrendo uma
perseguição maciça’
Entrevista com Sonia Ferreira
Alvim, advogada e diretora no Sudeste da Federação Nacional do Culto
Afrobrasileiro
Como começaram os ataques na
internet?
Havia grupos no Facebook e no
WhatsApp que estavam fazendo relações do que denominavam ser uma “lista negra”,
onde havia o nome de vários sacerdotes e sacerdotisas, vulgarmente conhecidos
como pais e mães de santo. Depois, chamou a atenção um site criado, por uma
pessoa específica por nós identificada, que subiu o tom das agressões. Nós
temos medo. Existem mil casos (de intolerância) espalhados pelo Brasil,
inclusive com mortes.
A quem vocês creditam as ofensas?
O povo de santo, infelizmente,
vem sofrendo uma perseguição maciça de uma religião diferente da nossa, que com
frequência denigre e ofende. E discriminam no mercado, em lojas, no shopping.
Já acontece há muitos anos, com agressões verbais e muitas vezes até físicas.
Mas não podemos ser levianos, porque também existem algumas pessoas do nosso
próprio segmento que se denonimam uma espécie de justiceiros da religião.
Independentemente de quem seja, o
que você diria ao autor dessas agressões?
Diria a essa pessoa que ela não
se tolera. Que tem problemas com ela mesma. Que a diferença está com ela. Que
ela não tem amor a si própria, não tem amor pelo mundo, que não professa a fé
de nada. Diria a ela que se olhasse no espelho e visse refletir nele a imagem
da criatura que se tornou. E ela, com certeza, sentiria vergonha.
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