Imagine a seguinte situação: você é preso em flagrante, conduzido à delegacia de polícia mais próxima e seu
aparelho celular é retido. Sem solicitar permissão à justiça, as autoridades
policiais conduzem rigorosa devassa ao seu aplicativo de mensagens Whatsapp e a
tudo o que nele possui. Áudios, textos, prints e fotos (incluindo nudes) de sua
vida particular, profissional, conjugal (ou até mesmo extraconjugal) poderão
ser usados contra você e poderão compor os autos de uma ação penal movida em
seu desfavor.
O que parece cenário de filme de
suspense poderá ser mais comum do que se imagina, pois nesta semana os
desembargadores da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Mato
Grosso (TJMT), à unanimidade, entenderam que mensagens trocadas pelo Whatsapp
podem, sim, constituir prova legal em uma ação penal.
O que pensa o cidadão? Este
acesso é legal ou ilegal? Configura invasão de privacidade ou vale tudo na luta
contra a impunidade? Impedir o acesso aos celulares de presos em flagrante sem
decisão judicial visa defender bandido ou o cidadão?
Para jogar luz sobre esta
questão, Olhar Jurídico entrevistou Ulisses Rabaneda, advogado, juiz do
Tribunal Regional Eleitoral (TRE-MT) e secretário-geral da OAB-MT, que
questiona: "Se você pode acessar o celular de um criminoso sem ordem
judicial, pode acessar o celular de qualquer pessoa idônea. Havendo qualquer
tipo de suspeita você vai poder pegar o celular do cidadão e vasculhá-lo?”.
O recurso que gerou o
entendimento dos desembargadores do TJ foi protocolizado pelo réu Rosenildo
Pereira Gomes, que responde na 3ª Vara Criminal de Rondonópolis por
assassinato. Sua defesa pediu que o TJ desconsiderasse como prova do crime as
mensagens de áudio salvas na memória no aplicativo de seu aparelho celular,
apreendido em flagrante. Para a defesa, o uso destes diálogos no processo
configura quebra de sigilo telefônico sem mandado judicial. Sem sucesso.
De acordo com a decisão
colegiada, “não há que se cogitar a nulidade da interceptação telefônica por
falta de autorização judicial - quando ela já existir nos autos - e se revelar
necessária para o desenvolvimento das investigações, em razão das artimanhas
utilizadas pelo paciente e seus comparsas na prática delitiva, visando
dificultar a elucidação dos crimes, somada à impossibilidade de obtenção de
indícios de autoria por outros meios admitidos em direito”.
Assim, entendem os
desembargadores que “o acesso aos dados do aplicativo Whatsapp existente no
aparelho celular da vítima, apreendido durante a prisão em flagrante delito,
não consubstancia quebra de sigilo das comunicações via telefone, que exige
prévia autorização judicial, mas, trata-se, sim, de mera extração de dados de
objeto apreendido relacionado ao crime, nos termos do art. 6º II e III, do
CPP”.
O rendimento, entretanto, rende
debate e vai de encontro à interpretação da Sexta Turma do Superior Tribunal de
Justiça (STJ), que no Recurso em Habeas Corpus – RHC 51.531-RO, julgou ilícitas
as provas advindas da colheita de tais dados sem a autorização judicial.
Fundamentou que a interpretação do artigo 3º, V da Lei 9.472/97 combinada com a
do artigo 7º, inciso III da Lei 12.965/14 permite concluir que ‘no acesso aos
dados do aparelho, tem-se devassa de dados particulares, com violação à
intimidade do agente. Embora possível o acesso, necessária a prévia autorização
judicial devidamente motivada”.
Naquele caso, o recorrente foi
denunciado no Juízo de Origem pela prática dos crimes de tráfico de drogas,
associação para o tráfico e resistência, depois de ter sido pilhado com 300
comprimidos de ecstasy. Quando preso em flagrante, o telefone celular do
recorrente foi apreendido e a polícia técnica procedeu a perícia, devassando as
mensagens trocadas através do aplicativo Whatsapp, o que fez com que o acusado
recorresse defendendo a tese de que a conduta da polícia caracterizava indevida
ingerência em sua vida privada, já que não foi autorizada pela justiça.
Há controvérsias:
“O que precisamos ter em mente é
que o direito à intimidade e à vida privada está previsto na Constituição”,
afirma o advogado Ulisses Rabaneda. Adiante ele explica seu ponto de vista:
Juiz eleitoral Ulisses Rabaneda. Foto: Assessoria OAB-MT. |
“É importante que as
circunstâncias fiquem destacadas: aquilo que envolve privacidade é que é o
ponto de controvérsia. O acesso a um perfil aberto do Facebook, por exemplo,
não tem problema algum e não demanda ordem judicial, o problema é quando o
Estado, através da autoridade policial, ingressa sem ordem judicial em uma
conversa privada sua, este é o ponto a se discutir. O STJ nesta decisão recente
diz que estes acessos demandam, sim, autorização judicial. Entendimento que
diverge dos desembargadores do TJ”, afirma.
O advogado compara o acesso aos
aparelhos celulares com o acesso às cartas. “O que a lei veda expressamente é a
interceptação, ou seja, aquela captação da mensagem ou do áudio
concomitantemente ou antes mesmo de chegar ao destinatário, é como uma carta. A
polícia não pode chegar ao correio e pegar sua carta sem autorização judicial.
No entanto, se essa carta for aberta e ocorrer o ingresso da autoridade
policial para fazer uma prisão em flagrante, com eles pegando esta carta, não
demandaria ordem judicial, pois não houve interceptação, uma vez que o conteúdo
já estava aberto. No caso do aparelho celular, a situação é diversa e gosto de
fazer esse paralelo com a carta. Veja, se você já recebeu a mensagem e não
houve interceptação, havendo uma busca e apreensão, a polícia não pode acessar
aquelas informações? O acesso destas informações sem ordem judicial violaria a
intimidade e a vida privada das pessoas?”, questiona-se Rabaneda, que adiante
elabora sua resposta.
“Particularmente concluo pela
necessidade da ordem judicial, pois o aparelho telefônico hoje guarda arquivos
da vida íntima do proprietário. Então, para o Estado devassar esse mecanismo
precisaria, sim, de uma autorização judicial devidamente fundamentada, como
decidiu o STJ”.
Questionado quais as
consequências práticas deste entendimento do TJ, quando colocado em prática, o
advogado reflete. “O entendimento do TJ firmado nesta decisão transmite como
autorizado que, havendo apreensão de celular, o policial ingresse no aparelho
das pessoas para vasculhar. Ou seja, está ali o objeto apreendido e o Tribunal
está dando autorização para que eles vasculhem-no. O entendimento do STJ, por
outro lado, diz: ‘olha, se o Estado quiser olhar o que tem dentro do celular
precisará explicar para um magistrado o porquê desta necessidade e esse juiz irá
analisar se é, de fato, necessário o acesso. Claro que no caso em análise, não
sei o teor, mas trata-se de apuração de homicídio, podemos imaginar que
mensagens possam comprovar se houve alguma conversa entre o acusado e a vítima,
enfim, ‘N’ situações em que o acesso ao aparelho possa beneficiar as
investigações e elucidar o crime. No entanto, creio que isso precisa ser
demonstrado para o juiz e só então ele decidir se é conveniente afastar o
princípio constitucional da intimidade”.
Para Rabaneda, o acesso
irrestrito ao conteúdo telefônico de um preso em flagrante “coloca em
vulnerabilidade a intimidade, a vida privada das pessoas. O Estado poderá
acessar as fotos que você tem, as suas conversas, isso tudo sem ordem judicial.
É complicado. Quando se pensa na necessidade de uma ordem judicial para o
acesso, isso não é para proteger bandido, é para proteger a sociedade. A partir
do instante que você pode acessar o celular de um criminoso sem ordem judicial,
você pode acessar o celular de qualquer pessoa idônea. Havendo qualquer tipo de
suspeita você vai poder pegar o celular do cidadão e vasculhar?”.
O advogado encerra com um
exemplo. “Há a suspeita de que determinado celular na mão de alguém seja
produto de furto. A polícia vai poder encaminhar essa pessoa para a delegacia,
pegar o celular dela e vasculhar tudo? Temos que ter elevado ao grau máximo a
proteção à intimidade. Isso não significa que se possa acessar um celular,
significa que para acessar seja necessária uma apreciação do judiciário”.
Fonte: Olhar Jurídico
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